domingo, 16 de junho de 2013

No Aeroporto
Carlos Drummond de Andrade


Viajou  meu  amigo  Pedro.  Fui  levá-lo  ao  Galeão,  onde
esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não
faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos da vã
e  numerosa  matéria  atual.  Sempre  tivemos  muito  assunto,  e  não
deixamos de explorá-lo a fundo.
Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a
bem  dizer,  não  se  digne  de  pronunciar  nenhuma.  Quando  muito,
emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais
se faz entender admiravelmente. É o seu sistema.
Passou  dois  meses  e  meio  em  nossa  casa,  e  foi  hóspede
ameno. Sorria para os moradores, com ou sem motivo plausível.
Era  a  sua  arma,  não  direi  secreta,  porque  ostensiva.  A
vista  da  pessoa  humana  lhe  dá  prazer.  Seu  sorriso  foi  logo
considerado  sorriso  especial,  revelador  de  suas  boas  intenções
para  com  o  mundo  ocidental  e  oriental,  e  em  particular  o  nosso
trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados
com esse sorriso (encantador, apesar da falta de dentes), abonam a
classificação.
Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho;
tinha  horários  especiais,  comidas  especiais,  roupas  especiais,
sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples presença e
seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores.
Recebia  tudo  com  naturalidade,  sabendo-se  merecedor
das  distinções,  e  ninguém  se  lembraria  de  achá-lo  egoísta  ou
importuno.
Suas  horas  de  sono  -  e  lhe  apraz  dormir  não  só  à  noite
como  principalmente  de  dia  -  eram  respeitadas  como  ritos
sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para não acordá-
lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a
gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de
seus  sonhos. Assim, por conta de Pedro, deixamos de  ouvir muito
concerto  para  violino  e  orquestra,  de  Bach,  mas  também  nossos
olhos  e  ouvidos  se  forraram  à  tortura  da  tevê.  Andando  na  ponta
dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas sendo por
amor de Pedro não tinha importância.
Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de
óculos  alheio  (e  não  os  usa),  relógios  de  pulso,  copos,  xícaras  e
vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou de punho.
Não  é  colecionador;  gosta  das  coisas  para  pegá-las,
mirálas e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pôr-las
na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém
duvido  que  mantenha  este  juízo  diante  de  Pedro,  de  seu  sorriso
sem malícia e de suas pupilas azuis - porque me esquecia de dizer
que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita
ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.

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